A guerra, em sua essência mais crua, é a institucionalização da violência entre grupos organizados, com objetivos políticos, territoriais, econômicos ou ideológicos. No centro desse cenário estão os militares: homens e mulheres treinados para atuar no limite da razão humana, onde matar o inimigo e arriscar a própria vida deixam de ser abstrações e se tornam realidades práticas, legitimadas pelo Estado.
O dever de matar não é um impulso natural. A maioria das pessoas, independentemente da cultura, cresce com ensinamentos éticos e morais que apontam para a preservação da vida, o respeito ao próximo e a resolução pacífica de conflitos. No entanto, para os militares, existe uma ruptura controlada e treinada com esse princípio: matar, quando necessário, torna-se um dever, e não um crime. Essa reconfiguração moral só é possível por meio de um processo sistemático de treinamento físico, psicológico e ideológico.
O treinamento militar moderno visa moldar o indivíduo para que ele seja capaz de cumprir sua missão, mesmo sob extremo estresse, medo e incerteza. Isso envolve condicionamento físico, disciplina rígida, obediência hierárquica e, principalmente, preparo psicológico para aceitar a ideia de matar o inimigo como parte de sua função.
Esse processo de formação militar passa, muitas vezes, pela despersonalização do inimigo. O adversário não é apresentado como um indivíduo com sentimentos, família ou humanidade, mas sim como uma ameaça, um alvo, alguém que deve ser neutralizado para garantir a segurança da própria tropa, da nação ou da missão em curso. A linguagem militar frequentemente reforça isso, com termos como “neutralizar”, “alvo”, “contato”, em vez de “pessoa”, “homem” ou “soldado inimigo”.
Esse equilíbrio entre dever e consciência ética é um dos maiores desafios da vida militar. O soldado não é apenas uma máquina de guerra; é um ser humano em constante tensão entre sua humanidade e seu papel funcional. Muitos que serviram em combate carregam por toda a vida as marcas psicológicas de decisões tomadas sob fogo cruzado, mesmo que essas ações tenham sido legais ou taticamente corretas.
Desde o século XX, especialmente após os horrores das duas guerras mundiais, os treinamentos militares passaram a adotar técnicas mais realistas, visando reduzir a hesitação em combate. Estudos mostraram que, durante a Segunda Guerra Mundial, muitos soldados hesitavam em atirar diretamente no inimigo, mesmo sob risco de vida. Isso levou à criação de programas de treinamento baseados em simulações de combate, tiros em alvos com forma humana e condicionamento reflexivo — tudo para tornar o ato de atirar em alguém o mais automático possível sob estresse.
Além disso, o treinamento militar também enfatiza o trabalho em equipe, o vínculo entre irmãos de armas e a lealdade mútua. Muitas vezes, os soldados relatam que, no calor do combate, eles não lutam por ideologias abstratas, mas por seus companheiros ao lado. Esse senso de camaradagem é crucial para suportar a carga emocional de matar e de ver a morte de perto.
Em tempos de guerra, o ato de matar é legalmente amparado. O Direito Internacional Humanitário estabelece regras para o uso da força, definindo quem pode ser um alvo legítimo e em quais circunstâncias. A distinção entre combatentes e civis é fundamental. O militar que mata um inimigo armado, em um contexto legítimo de combate, não é considerado um assassino, mas sim alguém cumprindo sua função institucional.
Contudo, essa legitimação não impede que surjam questionamentos éticos e morais, especialmente quando os limites entre combatentes e não combatentes se tornam turvos, como em guerras assimétricas, conflitos urbanos ou em missões de “paz” em áreas de alta tensão.
Matar não é um ato sem consequências. Muitos militares retornam do combate com transtornos como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), pesadelos, culpa ou distúrbios de adaptação. A experiência de tirar uma vida, mesmo que considerada legítima, pode corroer lentamente a psique de quem a vive. Há, inclusive, uma diferença clara entre o dever de matar e a capacidade de viver com isso depois.
A sociedade civil, muitas vezes, não compreende o que significa carregar esse tipo de memória. O retorno à vida “normal” pode ser difícil para quem aprendeu a matar como um ato de proteção. O treinamento para a guerra prepara o corpo e a mente para a luta, mas raramente prepara o indivíduo para o silêncio e a solidão que vêm depois dela.
O dever de matar o inimigo, quando necessário, é parte integral da vida militar. Ele não surge naturalmente, mas é construído por meio de um processo intenso de formação, disciplina e desumanização do oponente. Apesar disso, os militares continuam sendo seres humanos, com consciência e emoção. O treinamento para a guerra os capacita a cumprir esse dever, mas não os torna imunes às consequências psicológicas e morais que dele decorrem. Em última análise, o ato de matar em combate é um fardo — um que carrega o peso não apenas do inimigo abatido, mas também de tudo que se perde, interna e externamente, a cada disparo feito.
O artigo 340 do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969) estabelece o crime de covardia diante do inimigo nos seguintes termos:
Art. 340 – Fugir o militar, durante a presença de inimigo, ou dele aproximando-se, para lugar onde possa subtrair-se ao combate:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 20 (vinte) anos.
Este artigo, por si só, já é revelador do peso que o ordenamento jurídico militar dá ao comportamento do combatente em situação de confronto. A simples fuga, em cenário de presença inimiga, é tratada como crime de gravidade máxima — com pena que pode chegar a duas décadas de reclusão. A razão disso é clara: a eficácia do esforço militar coletivo depende da confiança mútua entre os combatentes. Um que foge pode colocar em risco toda a tropa.
Ao civil, a ideia de “morrer por dever” pode parecer absurda ou injustificável. No entanto, para as Forças Armadas, a permanência no campo de batalha diante da morte iminente é vista como o ápice da lealdade, da coragem e da disciplina militar. É o sacrifício supremo pela missão, pelos companheiros de farda e pela pátria. Mais do que bravura individual, trata-se de um imperativo funcional, essencial para manter a coesão e a eficácia do grupo em combate.
O militar, ao ingressar na carreira, é formado com essa perspectiva. Ele jura defender a pátria “com o sacrifício da própria vida, se necessário for”. O conceito de heroísmo militar está intrinsecamente ligado à disposição de enfrentar o risco extremo sem hesitação, e essa mentalidade é reforçada em treinamentos, discursos institucionais e até mesmo nas tradições e símbolos da caserna.
Do ponto de vista humano, a fuga instintiva diante da ameaça de morte é natural. O medo é uma reação fisiológica universal e, em contextos de guerra, ele se intensifica. No entanto, o sistema militar — baseado em hierarquia, disciplina e controle emocional — reprime essa tendência e a transforma em responsabilidade criminal. A fuga não é vista como um gesto de autopreservação, mas como uma traição aos valores militares e aos companheiros de armas.
O crime de covardia não exige que o militar efetivamente abandone o campo de batalha. Basta que, diante da presença real ou iminente do inimigo, ele se desloque para lugar seguro com a intenção de escapar ao confronto. Ou seja, a intenção de se subtrair ao combate já configura o crime, mesmo que não haja dano efetivo causado à operação militar.
É importante observar que o artigo 340 exige a presença real do inimigo ou sua aproximação, o que significa que não se pune qualquer ausência de bravura, mas sim a conduta de fugir do confronto armado — o momento crucial em que se exige o máximo de coragem e comprometimento do combatente.
A tipificação da covardia no Código Penal Militar não se restringe à tropa de base. Oficiais e comandantes também são responsabilizados por ações similares. O artigo 341 do mesmo código, por exemplo, trata do abandono de posto diante do inimigo:
Art. 341 – Abandonar o militar o posto que lhe foi confiado para a defesa, em presença do inimigo:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos.
Essa responsabilização em todos os níveis reforça a lógica de que ninguém pode recuar sem ordem ou justificativa, sob pena de colocar toda a estrutura em risco. A posição do comandante, inclusive, é ainda mais sensível, pois sua fuga pode desencadear o colapso moral e psicológico da tropa.
A existência de uma pena tão severa para a covardia levanta debates éticos importantes. Até que ponto o Estado pode exigir que um ser humano permaneça no front, sabendo que isso pode levá-lo à morte certa? O militar, em última análise, tem o dever jurídico de morrer, se isso for necessário para o cumprimento da missão?
Na perspectiva legal e institucional, a resposta é sim. O militar não é apenas um funcionário público em uniforme — ele é parte de um sistema que exige, em certas circunstâncias, o sacrifício total. A força moral que sustenta essa exigência se baseia em valores como honra, disciplina, lealdade e espírito de corpo. Mas, do ponto de vista individual, as consequências são dramáticas.
A história militar mundial é repleta de exemplos de soldados punidos por recuar em momentos críticos, mesmo que suas decisões tenham sido tomadas por pânico, trauma ou instinto de sobrevivência. E isso continua sendo realidade: em zonas de guerra contemporâneas, como as operações de paz sob mandato da ONU ou missões em territórios hostis, a expectativa de bravura e firmeza persiste.
É importante destacar que nem toda retirada é crime. A retirada tática, ordenada pelo comando para preservar vidas ou reposicionar forças, é legítima e até estratégica. O que o Código Penal Militar pune é a fuga individual e não autorizada, motivada pelo medo ou recusa ao confronto. Além disso, em julgamentos, podem ser considerados fatores como estado psicológico, condições físicas, pressões externas ou ambiguidade na cadeia de comando, o que pode atenuar ou mesmo afastar a responsabilização penal.
O crime de covardia diante do inimigo, previsto no Código Penal Militar brasileiro, simboliza uma das facetas mais duras da vida militar: o dever de morrer quando for necessário. Esse dever não é apenas simbólico; é jurídico, prático e penalizado com severidade. Ele representa a máxima entrega que o Estado pode exigir de um de seus cidadãos: a disposição de sacrificar a própria vida em defesa de um bem coletivo maior.
Embora compreensível sob a lógica da guerra e da disciplina militar, esse dever colide com o instinto humano mais básico — o de sobreviver. É nesse ponto que o direito, a ética e a psicologia se encontram em um dilema profundo: entre a honra do soldado e a fragilidade do ser humano. Entender esse equilíbrio é fundamental para refletir sobre os limites do que se pode, ou não, exigir de um militar em tempos de combate.